Em 19 de julho de 2008, o Brasil perdia Dercy Gonçalves, que nos deixava aos 101 anos, em decorrência de uma pneumonia que evoluiu para infecção pulmonar e insuficiência respiratória.

A primeira passagem da atriz e humorista pela Globo, na segunda metade dos anos 1960, foi marcada por problemas com os generais que governavam o país, que não gostavam de seu estilo popular, e também por algumas confusões involuntárias. Nessas ocasiões, ela criou saia justa com patrocinadores: falou que a Coca-Cola era ruim e confundiu um banco com uma vacina.

Dercy e José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, que dirigiu a Globo durante 30 anos, sempre tiveram uma relação de amizade e gratidão. Em seu “O Livro do Boni”, o executivo conta que foi Dercy quem pressionou Walter Clark (1936-1997), que havia assumido o cargo de diretor da Globo, para acelerar sua ida para a emissora, em 1967.

Quando Boni chegou na casa, Dercy fazia um enorme sucesso com os programas Dercy Comédias, na sexta, e Dercy Espetacular, no domingo. “Mas tinha problemas com a produção e com a direção dos dois programas. O Comédias vivia problemas de censura, que acabaram o inviabilizando”, conta Boni em seu livro. Com o programa cancelado, surgiu o Dercy de Verdade.

Naquela época, Dercy, com sua conhecida sinceridade e sem nenhum pudor nas palavras, causou duas confusões envolvendo patrocinadores da emissora.”Uma foi com a Coca-Cola, grande cliente da Globo. A Dercy, falando de si mesma, revelou no ar: ‘Eu só tomo Coca-Cola. É ruim, mas todo mundo bebe'”, relembra.

A outra foi com o extinto Banco Nacional de Habitação (BNH), que fechou uma campanha em que os artistas emitiam opiniões positivas sobre o financiamento da casa própria. Só que Dercy confundiu, ao vivo, BNH com BCG, a vacina para tuberculose.

“Olha, eu não acredito nesse BNH. Não adianta porra nenhuma. Fiquei tuberculosa com BNH e tudo. Essas coisas que o governo dá de graça. Não funcionam. BNH é uma merda”, disparou no ar.

No dia seguinte, segundo Boni, nos postos do BNH havia filas de pessoas querendo receber de volta o sinal que haviam dado e ao qual teriam direito em caso de desistência. “A Globo precisou explicar nos telejornais que a Dercy havia feito uma confusão”, ressalta Boni.

Pouco tempo depois, a Globo mudou radicalmente sua programação e tirou os programas de Dercy Gonçalves do ar, já que causavam muitos problemas com a Censura Federal do regime militar.

Quando foi demitida, ela ganhava 80 mil cruzeiros por mês, sendo um dos maiores ordenados do canal (o salário mínimo era 156 cruzeiros). “De repente, quiseram enforcar a rainha, com o nome de Dercy Gonçalves proibido de ser usado em qualquer rede de TV, mas eu tenho um fôlego de sete gatos, aí é que se deram mal”, explicou ao Jornal do Brasil de 27 de abril de 1980, quando estava na Bandeirantes, onde fez sua primeira novela, Cavalo Amarelo. Antes disso, Dercy processou a Globo e ganhou uma verdadeira fortuna (4 bilhões de cruzeiros).

A atriz voltou para a emissora somente nos anos 1980, convidada para participar de novelas, como Que Rei Sou Eu? (1989) e Deus nos Acuda (1992), além de humorísticos e do quadro Jogo da Velha, do Domingão do Faustão.

Carro zero

Em seu livro, Boni também conta que, quando começou a trabalhar na Globo, sempre ia para casa de Dercy Gonçalves junto com João Lorêdo (1930-2012), que passou a dirigir os programas dela. “Da cozinha, vinha o perfume da ‘carne assada da Dercy’, que depois virou ‘carne assada do Boni’. Era uma coisa mágica, feita somente com água, alho e cebola e mais nenhum mistério”, lembra.

Um dia, ao sair da casa de Dercy, Boni percebeu que seu Fusca havia sido roubado. “A Dercy riu e disse: ‘Paulista boboca, não tinha trava? Deixa que o seguro paga'”, registra. O problema é que o carro não tinha seguro. Desolado, Boni foi para casa de táxi.

Mas a surpresa maior veio no dia seguinte, quando ele foi despertado por um vendedor de uma concessionária da Volkswagen com um carro zero. “Dona Dercy Gonçalves mandou entregar para o senhor”, disse o vendedor.

Muitos anos depois, Boni teve a chance de retribuir o feito. “Pouco antes de ela morrer, a Dercimar [filha de Dercy] me disse que a mãe ia de táxi visitar as amigas e jogar bingo, que ela adorava. Mandei de presente um carro zerinho para ela”, conta Boni.

O homem que ficou famoso por implantar o “padrão Globo de qualidade” diz que, mesmo perto dos cem anos de idade, a atriz ainda lhe mandava mensalmente um prato de carne assada. “Uma mulher como Dercy não morre nunca”.

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Thell de Castro

Apaixonado por televisão desde a infância, Thell de Castro é jornalista, criador e diretor do TV História, que entrou no ar em 2012. Especialista em história da TV, já prestou consultoria para diversas emissoras e escreveu o livro Dicionário da Televisão Brasileira, lançado em 2015 Leia todos os textos do autor