Antes de Roque Santeiro (1985), as novelas com temáticas regionais costumavam gerar trilhas de volume único e, às vezes, até internacional, como foi o caso de O Bem Amado (1973). Difícil imaginar as cenas de Odorico Paraguaçu (Paulo Gracindo) e os habitantes de Sucupira embaladas por hits “importados”. A partir de ‘Roque’ a história mudou, quando Mariozinho Rocha não conseguiu ver Madonna soltando a voz no universo de Asa Branca. Foi lançada então ‘Roque Santeiro – Volume 2’, contendo mais uma vez músicas nacionais. O disco não fez nem de longe o sucesso da primeira trilha e poucas músicas dele são lembradas e fazem referência direta à novela. O fato é que as músicas internacionais abandonaram de vez as tramas com conteúdo mais rural.

Comparada com todas as novelas que lançaram uma segunda trilha nacional, ‘Tieta – Volume 2’ foi a mais importante. As músicas do segundo volume marcaram a virada de vários personagens, se tornaram grande sucesso e até hoje remetem imediatamente à novela. A capa com a protagonista Betty Faria chamou até mais atenção que a do primeiro disco, tanto que foi usada na reprise no Vale a Pena Ver de Novo, quando a Som Livre colocou no mercado uma coletânea com as melhores músicas das duas trilhas.

Para acompanhar a virada da personagem Imaculada (Luciana Braga) – que foge das garras do “coronér” Artur da Tapitanga (Ary Fontoura) sob as bênçãos de Tieta, logo é acolhida por Dona Milu (Miriam Pires) e ainda reencontra seu príncipe, Ricardo (Cássio Gabus Mendes) – foi pedido a Aldir Blanc que escrevesse uma letra para o instrumental ‘Imaculada’, de Ary Sperling, que fechava a primeira trilha e marcou muito a personagem. Elba Ramalho dá um show interpretando a canção que abre o volume 2 e mantém a brejeirice romântica da menina sofrida que sonha com um príncipe encantado sobre um cavalo branco. A música foi tão marcante que saiu no 12° álbum de carreira da Elba, o seu primeiro ao vivo.

Quando a amiga misteriosa de Tieta, Ninette (Rogéria), chega a Santana do Agreste, abala a moral e os bons costumes. Mas, mais do que isso, ela vem para promover uma transformação em outra personagem, a simplória Tonha (Yoná Magalhães) viúva recente de Zé “coisa ruim” Esteves (Sebastião Vasconcelos). Depois de causar muito na cidadezinha, Ninette atende um pedido de Tieta e leva Tonha para São Paulo. Ela volta repaginada, dona de si, livre para o amor e com um visual moderno. Para marcar esse momento, surge a canção ‘Uma nova mulher’, escrita por Paulo Debétio e Paulinho Resende e interpretada por Simone, que sempre se preocupou em cantar músicas engajadas, com temas fortes sobre a mulher, direitos dos brasileiros e até sobre política. Essa música foi lançada em seu 16º álbum de estúdio.

A filha de Tonha, Elisa (Tássia Camargo), também teve o seu momento. Passando por uma crise no casamento com Timóteo (Paulo Betti), Elisa começa a se desenvolver, deixa de ser tão menina e inocente e se torna um mulherão. E para combinar com essa mudança nada melhor do que Gal Costa cantando um bolero, coisa que ela gostava muito de fazer nos anos 80. A música ‘Alguém Me Disse’, composta por Jair Amorim e Evaldo Gouveia, foi um sucesso em 1960 na voz de Anísio Silva. A versão de Gal, além de poder ser ouvida na trilha da novela, também foi lançada em seu disco ‘Plural’ em 1990, que eternizou outro grande sucesso na voz da cantora, a música ‘Cabelo’.

Outro personagem que chega à cidade, a mando de Tieta, é Gladstone (Paulo José). Tieta o paga para tirar a virgindade da amiga Carmosina (Arlete Salles). Como no coração ninguém manda, ele acaba se apaixonando por ela, e isso transforma a vida de Carmô, que, nessa nova fase, também ganha um tema de amor, o forró ‘Doida pra te amar’ na voz de Nando Cordel, com participação especial da cantora Amelinha.

Mantendo o lado romântico de Carol (Luiza Tomé) – que acaba se apaixonando por Osnar (José Mayer) e ganha forças para se libertar de Modesto Pires (Armando Bógus), ficando livre para cuidar de sua vida -, a música que dava o tom era ‘Vem morena’, com Nana Caymmi. A música foi composta por Danilo Caymmi e Paulo César Pinheiro e seria inicialmente o tema de abertura de Tieta, mas Hans Donner e Boni chegaram à conclusão que as cenas pediam algo mais animado. Porém, ‘Vem morena’ não foi desperdiçada e entrou no volume 2.

O sertanejo que dominaria as paradas de sucesso nos anos 90 estava presente através de Chitãozinho & Xororó na primeira trilha. Na segunda, quem dá voz ao estilo é Roberta Miranda e sua regravação de ‘Luar do Sertão’, um grande clássico composto por Catulo da Paixão Cearense e João Pernambuco. Catulo passou sua vida defendendo ser o único compositor da música. De outro lado, João sempre disse ter sido vítima de plágio, pois a melodia era sua. Com os conflitos resolvidos e direitos reconhecidos, ‘Luar do Sertão’ ganhou regravação de vários artistas. A versão de Roberta Miranda entrou para o seu disco de 1990, chamado ‘Amigos Interpretam Roberta Miranda’, e foi o seu primeiro tema em uma trilha sonora de novela. Serviu de tema para a liberal Laura (Cláudia Alencar), esposa do Comandante Dário (Flávio Galvão).

A chegada de Silvana (Cláudia Magno), a filha de Marcolino Pitombo (Otávio Augusto), que vem do Rio de Janeiro para visitar a família e acaba ficando, provoca uma mudança na relação de Dário e Laura. As duas se tornam amigas, e quando Laura percebe o interesse de Silvana pelo marido, acaba estimulando o envolvimento dos dois desde que ela também participe. A música que embalou a personagem foi ‘Sinceridade (Sinceridad)’, uma versão de um bolero latino feita por João Bosco, incluída em seu segundo disco pela gravadora CBS. Esse disco possui também ‘Jade’, da trilha de O Salvador da Pátria (1989).

Para acompanhar as fugidinhas de Modesto Pires, foi escolhido o sambinha ‘Dancei’, composto por Martinho da Vila, tema perfeito para o personagem que trazia um tom satírico e divertido característico dos sambas dos anos 20. Essa música foi lançada no seu disco de 89, ‘O Canto das Lavadeiras’, que possuía uma capa belíssima com um vestido florido pendurado no varal num fundo de céu azul.

Mestre Zinho, Zé Pacheco e “Parafuso” (Carlos Albuquerque Melo) formaram em 1972 o conjunto de forró 3 Do Nordeste. Desde então trabalharam com inegável sucesso na divulgação da cultura nordestina. No volume 2 de Tieta, eles aparecem cantando uma composição de Marcos Wagner, a música ‘Água Na Boca’, que pontuava as cenas do desavergonhado Coronel Artur da Tapitanga.

Duas figuras misteriosas aportam em Santana do Agreste para mexer com os curiosos de plantão da cidade: os empregados de Mirko Stephano, Bebé (Simone Carvalho), a jovem linda que emana sedução pra cima de Timóteo; e o sedutor de porte atlético Rosalvo (Paulo César Grande), que encanta Elisa. Para ele, foi escolhida a música ‘Indo e Vindo (One for the Road)’, do ex-RPM Paulo Ricardo, que em 1989 estava lançando seu primeiro disco solo.

Quem também desembarca em Santana do Agreste é um tal empresário, que pretende montar uma fábrica da empresa multinacional Brastânio, e contagia diversos personagens com a promessa de trazer progresso para Mangue Seco. Ele esconde os riscos ao meio ambiente que essa empreitada pode causar. Na verdade, o empresário é Arturzinho (Marcos Paulo), filho do Coronel, que há anos não dava notícia. Suas tramoias e seu envolvimento com Tonha, por quem fora apaixonado no passado, foram marcados pela instrumental ‘Urbana’, composta por Ary Sperling.

Seguindo firme na ideia de dar valor às canções incidentais dentro da novela e nas trilhas, o volume 2 de “Tieta” contou com mais dois temas. ‘O Comandante (Star Spangled Banner)’, releitura de um hino cívico americano, vinha em um pot-pourri com ‘O Bêbado’; eram, respectivamente, temas do Comandante Dário e de Bafo de Bode (Benvindo Siqueira), o mendigo bêbado da cidade, que dizia as verdades que todo mundo queriam dizer.

Uma curiosidade sobre esse pot-pourri é que ele foi atribuído, no disco, a uma tal de Banda de Santana do Agreste, que era, nada mais, do que um grupo de músicos de estúdio da própria gravadora Som Livre.

Outra instrumental ficou por conta de Sérgio Mendes. A música ‘Toucan’s Dance’ foi lançada em seu disco ‘Arara’, de 1989.

Para finalizar este texto, uma das músicas mais marcantes da trilha de Tieta. ‘A lua e o mar’ foi tão impactante quanto ‘Meia lua inteira’, com Caetano Veloso, e também servia como tema de locação para as paisagens de Santana do Agreste. A música foi resultado de um reencontro de dois ex-companheiros do Novos Baianos, em 1990: Moraes Moreira e Pepeu Gomes. ‘A lua e o mar’ se tornou um hit do carnaval daquele ano e foi composta em parceira com Fausto Nilo.

Além de ser uma novela impecável, de sucesso estrondoso seja lá quando e onde for exibida, Tieta lançou duas coletâneas inesquecíveis que reuniu o melhor da música brasileira e regional. Uma delícia para os ouvidos em comparação com as trilhas mequetrefes dos tempos atuais.

Confira outras curiosidades desta trilha em “A história do álbum: Tieta – volume 2”, no canal Vinilteca.


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Sebastião Uellington Pereira é apaixonado por novelas, trilhas sonoras e livros. Criador do Mofista, pesquisa sobre assuntos ligados à TV, musicas e comportamento do passado, numa busca incessante de deixar viva a memória cultural do nosso país. Escreve para o TV História desde 2020 Leia todos os textos do autor